Por que taxar elétricos chineses pode ser tiro no pé das montadoras

Fabricantes pressionam governo para aumentar a taxação do setor, na contramão de seu próprio discurso de reduzir carga tributária
HG
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26.09.2023 às 15:15
Fabricantes pressionam governo para aumentar a taxação do setor, na contramão de seu próprio discurso de reduzir carga tributária

A Anfavea (Associação Brasileira dos Fabricantes de Veículos Automotores) pressiona o Governo Federal para um decreto que aumente o imposto de importação para veículos elétricos (EVs) de origem chinesa em 35%. Isso ocorre porque as transnacionais que produzem carros no país estão alarmadas pela chegada dos elétricos “made in China”, com preços até mesmo inferiores aos que cobram por seus modelos a combustão.

Ou seja, para continuar garantindo a preferência dos brasileiros, as montadoras alemãs, francesas, italianas, japonesas, norte-americanas e sul-coreanas necessitam de uma “blindagem tributária”, já que, como não investem na modernização de seu parque industrial, não têm como competir com as mais de 80 marcas chinesas que despontaram nas últimas décadas.

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Simples assim: você pega um BYD Dolphin de R$ 150 mil, aumenta seus impostos em mais de um terço e joga seu preço ao consumidor para a casa dos R$ 220 mil, beneficiando quem vende hatches transformados em SUVs por até R$ 130 mil.

Faça o que eu digo, não o que eu faço

A mesma Anfavea que pede por aumento de impostos aos elétricos importados, hoje, vai colocar a culpa no governo, amanhã, quando as vendas de 0 km voltarem a cair. Vão dizer que a carga tributária brasileira é escorchante, que o “custo Brasil” é o culpado de tudo.

Basta o leitor pensar no seguinte: se nos Estados Unidos e na China uma Aspirina tem o mesmo preço, na África do Sul ela sai pelo dobro e, no Brasil, 30 vezes mais caro do que o valor de referência internacional.

Diante de uma suposta invasão de elétricos chineses, o lógico, o razoável, o coerente seria que os fabricantes “brasileiros” pedissem ao governo uma redução de suas próprias cargas tributárias, para baratear os automóveis que vendem, ganhando competitividade em relação aos estrangeiros.

Mas eles estão fazendo o contrário disso: em vez de pressionar para reduzir o preço final dos carros que produzem aqui, sob a justificativa de que necessitam manter seus parques industriais vivos, aumentando a demanda nos segmentos em que atuam, pedem o aumento da carga em relação aos elétricos made in China.

A manobra é um sinal claro de que as fabricantes aqui instaladas já perceberam que não há como frear a virada da eletromobilidade – afinal trata-se de uma questão de sobrevivência do ser humano –, ao passo que também já percebeu que nem barateando seus modelos a combustão conseguirá convencer o consumidor por muito mais tempo.

Daí, entre investir bilhões de dólares na modernização mais rápida de suas linhas de montagem, preferem o protecionismo. O mais curioso é que o pedido de decreto vai na contramão do projeto de lei (PL) 2.327/2021, de acordo com o qual a logística reversa de baterias de veículos elétricos deve priorizar a reciclagem e o reaproveitamento de seus componentes na fabricação para novas baterias.

Já o PL 2.156/21, recentemente aprovado na Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara, incentiva a aquisição de veículos elétricos, a viabilização de uma rede pública de recarga e medidas que facilitem a conversão de modelo com motor a combustão em elétricos.

Há, ainda, o PL 915/23, que torna obrigatório o sistema automático de desligamento geral e esfriamento da bateria dos EVs, no caso de batida com deflagração dos airbags. É surreal, mas a Anfavea quer que a Presidência da República publique um decreto que vá contra projetos em trâmite no próprio Congresso.

O tiro no pé das fabricantes brasileiras pode ser ainda maior. Os investimentos de fabricantes chinesas no Brasil não significam perda nenhuma para o Brasil, mas sim ganhos em termos industriais ou de soberania. Menos de três anos após a Ford ter encerrado sua produção no uma gigante chinesa duas vezes maior que a marca americana está assumindo sua fábrica na Bahia, onde produzirá veículos eletrificados, com olhar para um futuro de longo prazo.

Se o aumento na tributação de elétricos chineses virar realidade, o Brasil mais uma vez terá escolhido um caminho marginal à virada da eletromobilidade, seguindo com automóveis atrasados por preços aviltantes que, agora, as montadoras sequer conseguem manter, já que a pressão das matrizes europeias e norte-americanas é por remessas de lucro cada vez maiores.

Em 2012, o governo zerou o IPI dos veículos 0 km. Naquela época, a medida que implicou na renúncia de R$ 26 bilhões de dinheiro público e não aumentou as vendas, que, na contramão do esperado, recuaram 0,3% no fim daquele ano.

Há 13 anos, o objetivo da desoneração não era o aquecimento do mercado interno, mas a manutenção dos empregos no setor automotivo. Neste ponto, foram criadas mais de 27 mil vagas de trabalho, mesmo que temporárias. Porém, o resultado a médio prazo foi negativo, já que, entre 2014 e 16, as montadoras demitiram 200 mil trabalhadores.

Então, basta olhar para os US$ 14,6 bilhões (na época, equivalentes a R$ 25,9 bilhões) em remessas de lucro que foram enviadas para as matrizes, no exterior, que o leitor verá para onde foi o dinheiro, quando há mais de uma década tentou-se o mesmo plano.

Ocorre que desta vez não será igual, mas muito pior: há grandes riscos de boa parte das marcas que dominam o mercado nacional, atualmente, fecharem ou reduzirem suas fábricas e seguir operando apenas com veículos elétricos importados, produzidos em escala muito maior em gigafábricas no exterior.

Ao tomar essa posição, a Anfavea refreará qualquer possibilidade de qualificação do nosso mercado, impedindo que elétricos mais modernos e baratos estejam ao seu alcance, enquanto nos convencem que motores a combustão ainda são “o futuro da nação”. Parafraseando o imortal Renato Russo: “Que país é esse?”.

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto

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